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Maricá (RJ): Tribo usa idioma guarani para fortalecer cultura indígena

ONU – Entre as ocas feitas de pau-a-pique e palha, o cacique Tupã caminha descalço pelo chão de terra da Aldeia Mata Verde Bonita, em Maricá, no estado do Rio de Janeiro. Quando se aproxima de uma das casas, dois cães avançam em sinal de proteção. “Pexyryke peixu, u heme ke há” (*) grita o índio e os animais subitamente param. Ele explica: “Aqui, até os cachorros entendem guarani”.

A Aldeia Mata Verde Bonita (Tekoa Ka’ Aguy Ovy Porã), visitada pela equipe do Centro de Informação da ONU para o Brasil (UNIC Rio), é uma das oito comunidades guaranis no estado do Rio, onde moram 73 pessoas em uma área de proteção ambiental com mais de 90 hectares. Sua língua materna é a variedade mbya do guarani, um idioma indígena do tronco tupi-guarani, falado por milhares de indígenas do Centro-Oeste ao Sul do Brasil e em países vizinhos, como Bolívia e Paraguai.

“A preservação da língua começa pela prática. Ela está nas nossas moradias, plantio e cânticos”, afirma Tupã. O líder da comunidade considera, porém, que o preconceito é um dos principais empecilhos para a manutenção do idioma. “Acredito que muitos índios deixaram um pouco de falar sua língua materna por causa do preconceito. Quando vão a cidade e perguntam se são índios, eles têm vergonha de dizer que são”.

Tupã explica como é possível preservar a identidade cultural: “Vamos fazer as nossas ocas de palha, o plantio orgânico, sem agrotóxicos, vamos pescar, vamos nos pintar. Vamos ter orgulho de mostrar quem somos nós de verdade, dessa maneira vamos ser respeitados”.

Na tribo, a primeira língua aprendida pelas crianças é o guarani mbya e apenas aos sete anos de idade elas estudam o português. Há dois anos, Jurema Nunes de Oliveira ensina o idioma indígena na escola municipal da aldeia, chamada Para Poty Nhe’ Já (**). “A língua guarani mbya é difícil de ser esquecida. Tem gente que diz que nós não somos índios. Mas nós trabalhamos com isso, vivemos com isso, é a nossa cultura”, diz.

Sonhar em guarani, reivindicar em português
“Falar a língua materna indígena mantém as crianças pensando em guarani e sonhando em guarani”, afirma o professor Domingos Nobre, do Instituto de Educação de Angra dos Reis (IEAR) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele trabalha com ensino escolar, formação de professores e construção de currículos escolares em comunidades indígenas guarani. Para ele, a língua, juntamente com a religião, é uma das bases da preservação étnica e cultural desses povos no Rio de Janeiro.

Nobre explica que a educação tradicional indígena é um fenômeno social em que os mais velhos transmitem seus conhecimentos às gerações mais novas, por meio dos exemplos e do convívio comunitário. “Ela se dá de forma contínua, regular e está baseada prioritariamente na tradição oral. Não depende, portanto, de escola nem de escrita”, afirma o educador. Para ele, a implantação de escolas indígenas bilíngues, diferenciadas e interculturais representa a imersão de crianças e jovens no universo do letramento. “As escolas possibilitam o uso da língua portuguesa para a defesa de direitos étnicos, permitindo a inserção de jovens lideranças num campo de disputas simbólico, onde a escrita e os conhecimentos ocidentais pesam para uma maior conquista de direitos sociais, como à saúde, à terra e à cultura”, afirma o professor.

Nobre, que também estuda os impactos da energia elétrica nas aldeias, observa que a entrada da tecnologia trouxe mudanças na alfabetização e no convívio social. Ele explica que, hoje, crianças e jovens indígenas passam mais tempo assistindo televisão, compartilhando conteúdos nas redes sociais via celular, jogando vídeo games, frequentando menos a Casa de Reza e convivendo menos com os mais velhos. “Em contrapartida, assiste-se também uma nova geração usando as tecnologias para se comunicar, para se organizar politicamente, para produzir materiais em audiovisual que falem de seus problemas, de sua cultura e de sua comunidade, ampliando o leque de aliados às suas lutas contemporâneas”.

O cacique Tupã não abre mão das ferramentas tecnológicas para se comunicar com outras aldeias e disseminar a cultura indígena. Para ele, a informação também é um direito. “Acredito que devemos estar sempre antenados, porque se eu estiver atrasado e muito isolado quem pode me defender? Como vou saber dos meus direitos?”.

Uma trajetória de luta
Há doze anos, Darci Tupã assumiu a liderança da tribo. “Sem saber muito bem qual era o papel do cacique”, conta. Seu nome é uma homenagem a Darcy Ribeiro, antropólogo brasileiro que escreveu diversas obras de etnografia e defesa da causa indigenista, contribuindo com estudos para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Assim como o Darcy Ribeiro, o Darci Tupã tem uma trajetória de luta pela preservação cultural e resistência étnica dos povos indígenas, sobretudo de sua tribo, os Guarani Mbya. Em 2008, viu suas ocas irem ao chão depois que um incêndio criminoso destruiu todos os bens materiais de sua antiga aldeia, Tekoá Itarypu, que ficava na praia de Camboinhas, em Niterói, região metropolitana do Rio. A área é um sambaqui com cerca de 8 mil anos, considerada patrimônio arqueológico pelo IPHAN.

Em 2013, recebeu o convite da prefeitura de Maricá para ocupar uma área de restinga no bairro São José do Imbassaí, onde hoje está a Aldeia Mata Verde Bonita. “Temos uma história muito linda com o povo de Maricá, sem nunca abrir mão de nossa cultura”, explica. Em um projeto da prefeitura, a aldeia recebe alunos de escolas municipais para visitas e palestras. “A melhor maneira de promover nossa causa é recebendo as pessoas na aldeia. Seja pelo esporte, turismo, educação”, diz Tupã.

Segundo a secretária de cultura do município de Maricá, Andréa Cunha, a presença da Aldeia Mata Verde Bonita é uma forma de reafirmar a herança cultural indígena da região. “É uma oportunidade da nossa cidade fazer o resgate e valorizar as culturas tradicionais, criando um contraponto com a sociedade atual, tão marcada pela exploração da natureza”, explica. Ela afirma que uma parceria entre as secretarias de cultura e direitos humanos permite realizar visitas periódicas à aldeia, prestando assistência aos indígenas, buscando construir relações respeitosas, sem imposições na organização da comunidade. “O modo dessa construção é pautado pela aldeia, pois entendemos que a forma de ver o mundo implica na maneira de existir. O diálogo e o respeito vêm acima de qualquer projeto pré-formatado”.

Tupã tem muito a dizer sobre sua caminhada, mas escolhe uma palavra em guarani para resumir: ‘mbara ete’. Segundo o índio, ela significa estar sempre firme, nunca deixar a raiz enfraquecer. “ Muitas vezes, por causa das políticas mal dirigidas à nossa cultura, nós pisamos em espinhos. Mas com tantas caminhadas, já estamos calejados. Então, que esse espinho possa se quebrar e nossos pés possam se curar para que nunca se ande para trás, sempre para frente. E a palavra que eu encontro em guarani é ‘mbara ete’: forte, muito forte, como fibra, para nunca deixar quebrar”.

Lembrado pela ONU nesta quarta-feira (9), o Dia Mundial dos Povos Indígenas promove o reconhecimento das identidades, modo de vida, direito a terras tradicionais, territórios e recursos naturais de mais de 370 milhões de indígenas espalhados em 90 países. O tema deste ano é o 10º aniversário da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, celebrado no dia 13 de setembro. O documento é o instrumento internacional mais abrangente sobre os direitos dessas populações, incorporando um consenso global sobre sua proteção e estabelecendo normas para garantir sua sobrevivência, dignidade e bem-estar.

(*) “Não morde, eles são amigos”
(**) Nome próprio em guarani mbya

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Localizações são descritas em tupi-guarani. (Foto: João Henrique / Maricá Info)
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Índios mantém cultura através de artesanatos, danças, língua, música, entre outros. (Foto: João Henrique / Maricá Info)
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Construções são feitas de pau a pique. (Foto: João Henrique / Maricá Info)

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